Se Democracia em Vertigem foi o atestado de um Brasil em convulsão, uma espécie de recibo para um país que já vivia no olho do furacão, “Apocalipse nos Trópicos”, que chegou recentemente ao catálogo da Netflix, representa um passo adiante, mais corajoso e investigativo, na filmografia de Petra Costa.
A cineasta abandona a postura de resumo dos acontecimentos para mergulhar nas raízes culturais e religiosas que nutriram a crise política brasileira. O resultado é um documentário que troca a repetição indignada pela pergunta incômoda, focando na complexa e explosiva relação entre a fé cristã e o poder, uma força tectônica que redefiniu o cenário nacional na última década.
Sinopse
“Apocalipse nos Trópicos” investiga a ascensão do neopentecostalismo como força política dominante no Brasil. Partindo de um encontro revelador com o Cabo Daciolo no Congresso em 2016, Petra Costa inicia uma jornada para compreender como a fé se tornou um instrumento para um projeto de poder conservador.
O documentário elege o pastor Silas Malafaia como seu protagonista e fio condutor, obtendo um acesso privilegiado que permite mapear a ideologia, as estratégias e as ambições do movimento.
Através de entrevistas com figuras como o ex-presidente Lula, um vasto material de arquivo e a narração subjetiva que é sua marca registrada, Costa explora as origens dessa aliança, incluindo a influência norte-americana, e os seus efeitos devastadores sobre a laicidade do Estado.
Crítica
A principal virtude de “Apocalipse nos Trópicos” reside na sua mudança de abordagem em relação ao seu antecessor. Enquanto Democracia em Vertigem parecia satisfeito em narrar o que muitos já sabiam, este novo filme é movido por uma “missão e uma curiosidade”.
Petra Costa não se contenta em apontar o sintoma; ela busca o patógeno. A escolha de Silas Malafaia como figura central é um acerto estratégico. Ele é o para-raios da tempestade, e ao dar-lhe voz, o filme permite que o arquiteto do projeto revele seus próprios planos.
As entrevistas com Lula, por exemplo, são notavelmente diferentes das que se viam no filme de 2019. Aqui, há uma pauta clara: investigar, direto na fonte, como as regras do jogo político e religioso mudaram, transformando o que era um cinema de constatação em um cinema de investigação.
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O protagonista e seu evangelho do poder
O documentário alcança um feito notável ao conseguir que Silas Malafaia não apenas participe, mas se desnude em frente à câmera. Ele se revela menos como um simples líder religioso e mais como um estadista de uma teocracia em construção, um aspirante a “Khomeini dos trópicos” que vê a democracia apenas como a vontade da maioria, desconsiderando a proteção das minorias.
O filme o retrata como a verdadeira força motriz por trás de Jair Bolsonaro, que surge quase como um “boneco de ventríloquo”. A narrativa expõe com clareza a “Teologia do Domínio” — a doutrina que prega a ocupação de espaços de poder pela Igreja — como o plano de fundo para a indicação de ministros “terrivelmente evangélicos” e para a pressão constante sobre o governo.
Ao permitir que Malafaia exponha seu pensamento, o filme entrega sua mais poderosa contribuição: a autoincriminação de uma ideologia pelo seu próprio idealizador.
Ambição e limites metodológicos
Apesar de sua coragem, o documentário por vezes “sucumbe ao peso de suas ambições”. A tentativa de abarcar um fenômeno tão complexo — desde a influência da CIA na ditadura até a Teologia da Prosperidade e as eleições de 2022 — resulta em uma análise que, embora extensa, corre o risco da superficialidade.
O filme soa “exaustivo, ainda que superficial”, deixando de fora elementos cruciais como o papel avassalador das redes sociais ou a ascensão de novas figuras como Nikolas Ferreira.
A falha metodológica mais incômoda, no entanto, é a surpreendente diferença de tratamento entre seus entrevistados. Enquanto Malafaia e Bolsonaro expõem suas ideias sem grande confronto, com a cineasta em uma posição de escuta plácida, as conversas com Lula são mais inquisitórias, colocando-o contra a parede.
Essa abordagem remete perigosamente à parcialidade de veículos de imprensa hegemônicos e enfraquece a credibilidade investigativa do filme, gerando um incômodo para espectadores de diferentes espectros políticos.
O “Eu” autoral como força e fraqueza
Como em toda a sua obra, a subjetividade de Petra Costa é onipresente. Sua narração em primeira pessoa, que admite ter lido a Bíblia pela primeira vez na preparação do filme, serve como uma porta de entrada afetiva para o espectador. Ela humaniza a investigação ao partir de uma perplexidade quase filosófica: “Onde foi parar o amor?”.
No entanto, esse cinema autocentrado também revela suas limitações. A confissão de que “não fazia ideia de que a religião era tão importante para tanta gente em pleno século XXI” sublinha um afastamento de classe, um “olhar de fora para dentro” que, por vezes, soa ingênuo.
No clímax do filme, a narrativa parece se resumir a um combate entre a voz autoritária e enérgica de Malafaia e a voz suave, por vezes “choramingas”, da diretora. Essa dualidade, embora poeticamente potente, deixa o filme pobre de outras visões, insistindo em contar a história apenas a partir do “eu”.
Conclusão
“Apocalipse nos Trópicos” é um documentário paradoxal. É uma obra essencial, corajosa e tecnicamente refinada, que enfrenta um dos temas mais urgentes do Brasil contemporâneo. Seu maior mérito é oferecer um palco para que o pensamento fundamentalista que sequestrou a política brasileira se revele em toda a sua ambição e perigo. Contudo, sua amplitude e as idiossincrasias de sua diretora o impedem de ser a análise definitiva que almeja.
Ao final, o filme não oferece respostas fáceis nem ferramentas claras para o combate, mas cumpre um papel fundamental ao evocar o que Santo Agostinho chamou de as duas filhas da esperança: a indignação, por nos ensinar a não aceitar as coisas como estão, e a coragem, por nos inspirar a mudá-las. Petra Costa entrega um poderoso diagnóstico, deixando a tarefa do prognóstico e do tratamento para a sociedade que ele tão bem inquieta.
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