“A Própria Carne” é mais do que apenas a estreia cinematográfica do trio Ian SBF, Alexandre Ottoni e Deive Pazos (o famoso Jovem Nerd/Azaghal): é um passo ambicioso e corajoso para o terror nacional, buscando referências de peso que vão de Quentin Tarantino a Stanley Kubrick. Ambientado em 1870, com o cheiro da Guerra do Paraguai ainda pairando no ar, o filme chega com a promessa de um horror gráfico, psicológico e, por fim, sobrenatural.
O filme acerta em cheio ao demonstrar paixão e um cuidado técnico notável, especialmente nos aspectos de arte, figurino e efeitos práticos. É um projeto que merece respeito pela iniciativa de tirar o gênero do “quintal” e levá-lo para um outro patamar de produção.
Contudo, essa ambição toda acaba criando um dilema central: o filme tenta ser muitas coisas ao mesmo tempo – um thriller de confinamento, um horror cósmico, um drama de guerra – e, no meio dessa mistura, a própria linguagem do cinema se perde, ficando aquém do potencial que o roteiro carregava.
Sinopse
A trama acompanha três soldados brasileiros desertores da Guerra do Paraguai: Gabriel, Anselmo, e Gustavo. Após um confronto sangrento, eles buscam desesperadamente um refúgio e acabam encontrando uma casa isolada na fronteira. O local é habitado por um fazendeiro sinistro, um mestre da dobragem brasileira (Luiz Carlos Persy), e uma jovem misteriosa.
O que começa como um oásis de sobrevivência rapidamente se transforma em um pesadelo sufocante, onde os soldados descobrem que a guerra que fugiram pode ser menos macabra do que os segredos guardados dentro daquela casa.
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Crítica
O que se destaca em A Própria Carne é, sem dúvida, a sua execução e o talento bruto à frente das câmeras. O filme ostenta um gore de “nível gringo,” com efeitos práticos convincentes e maquiagem de ponta, essenciais para o gênero. Além disso, a ambientação, os figurinos e a direção de arte são impressionantes, disfarçando bem o baixo orçamento e o curtíssimo tempo de filmagem (apenas 15 dias!).
No elenco, um nome é inquestionável: Luiz Carlos Persy. Com seu vozeirão grave e rosto marcante, o dublador entrega de longe a melhor coisa do filme. Ele compõe um vilão com trejeitos de Quasimodo e Denis Lavant, cuja simples presença impõe respeito e inquietação. Os outros atores também não estão mal – Jorge Guerreiro, por exemplo, consegue trazer um destaque particular à discussão racial presente no subtexto.
É nos antagonistas, como Persy e a “doidinha sem nome,” que a direção consegue explorar nuances mais ricas, garantindo que os poucos alívios cômicos, quando surgem, funcionem muito bem. O som também é frequentemente elogiado, sendo imersivo e ajudando a construir a atmosfera.
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O dilema da decupagem
Apesar dos acertos técnicos e de elenco, o filme tropeça pesadamente na sua execução cinematográfica, quase como se o diretor Ian SBF – que mostra ter aprendido “alguns truques novos” como rack focus, slow motion e crash zooms – não soubesse como aplicá-los para construir o medo visualmente.
A sensação geral é que A Própria Carne funciona mais como um audiodrama ou um podcast do que como uma obra de cinema. O som é mixado dessa forma, a mise-en-scène lembra uma série ou novela, e a decupagem (a escolha dos planos) está totalmente à mercê do roteiro.
A tensão raramente está na imagem. Uma crítica recorrente é que as cenas se desenvolvem pelo texto. Um exemplo claro é a cena de tortura: o vilão diz que vai serrar a perna, diz que vai doer, diz que precisa ser feito. Enquanto isso, o que vemos não é a serra se aproximando do corpo ou a mão se movendo, mas sim rostos em close-ups com fundos desfocados.
Essa profusão de primeiros planos cria uma atmosfera de sufoco, sim, mas ironicamente inviabiliza a imersão, impedindo o espectador de ter uma boa noção espacial da casa e, consequentemente, do tamanho real do perigo que cerca os personagens. Quando a câmera mexe, parece que deveria estar parada. Quando está parada, seria melhor que estivesse em movimento. No fim, a beleza das imagens é prejudicada por uma cor azul “horrorosa” nas externas e zooms digitais pobres.

A perda de identidade
Outro problema reside no desequilíbrio narrativo. O filme sugere discussões simbólicas profundas – o impacto da guerra, o ciclo de violência, o peso do pecado – mas essas ideias permanecem herméticas. O ritual que sustenta o horror da casa é apresentado de forma enigmática, sem que o espectador consiga compreender plenamente suas implicações.
O roteiro, apesar de intrigante, parece precisar de “mais um ou dois tratamentos” para ficar completo. A economia narrativa do início, com os desertores em silêncio, é promissora, mas logo dá lugar a um falatório excessivo. Cabe a Persy a tarefa ingrata de se lançar em solilóquios intermináveis sobre química, divagações enológicas e origens onomásticas, que contribuem pouco para o seu coeficiente de maleficência.
Além disso, o filme perde a mão quando o horror psicológico (o ponto alto da primeira metade) dá lugar ao sobrenatural, como se a obra perdesse sua identidade no meio da transição. O resultado é um ritmo deliberadamente lento que, embora evoque obras como Os Oito Odiados, provoca mais desconforto e cansaço pela excessiva contenção do que o terror esperado, raramente atingindo o clímax emocional.
Conclusão
A Própria Carne sai como um filme que merece atenção e respeito, mas que se materializa como uma decepção para quem esperava uma excelência visual à altura da excelência dos efeitos práticos e das atuações. É uma obra que demonstra coragem e uma paixão inegável pelo cinema de horror, mas que se apoia demais na força do texto e da trilha sonora, e de menos na potência da imagem.
No fim, a obra se consolida como um cartão de visitas promissor para o trio de criadores, provando que há espaço — e público — para o horror brasileiro. Que este seja apenas o primeiro passo e que os próximos projetos consigam refinar o potencial aqui mostrado, garantindo que o “tesão no potencial lúdico do cinema de horror” se traduza em imagens tão memoráveis quanto as histórias contadas em voz alta.
Onde assistir ao filme A Própria Carne?
O filme “A Própria Carne” estreia nesta quinta-feira, 30 de outubro, exclusivamente na rede de cinemas Cinemark.
Veja o trailer de A Própria Carne (2025)
Quem está no elenco de A Própria Carne?
- Pierre Baitelli
- Camillo Borges
- Jorge Guerreiro
- Eber Inacio
- Jade Mascarenhas
- Daniel Moragas
- Luiz Carlos Persy
- George Sauma
- Frederico Vasques
















