Há filmes que emocionam, outros que provocam. “Manas”, longa de estreia na ficção da documentarista Marianna Brennand, vai além: ele paralisa. Ambientado na Ilha do Marajó, no Pará, o filme mergulha nas entranhas de uma realidade negligenciada — a da violência sexual contra meninas em regiões ribeirinhas, onde o Estado é ausente e o silêncio, regra.
Vencedor de mais de 20 prêmios internacionais e ovacionado no Festival de Veneza, “Manas” não apenas denuncia, mas transforma seu público em testemunha de um ciclo opressor que atravessa gerações.
Sinopse do filme Manas
Marcielle — também chamada de Tielle e “Mana” — é uma menina de 13 anos que vive com a família em uma casa de palafita em Marajó. Dividindo o espaço apertado com pais e irmãos, ela tenta viver sua infância desenhando, tomando banho de rio e indo à escola. Mas a puberdade marca o início de uma mudança brutal. Incentivada a vender açaí nas balsas, ela se vê exposta a abusos. Em casa, a situação não é diferente: o pai se revela abusivo e a mãe, grávida e resignada, fecha os olhos diante do que acontece.
Entre a memória da irmã mais velha que “sumiu com um homem bom” e o desejo de escapar, Marcielle vai desvendando os horrores que cercam sua vida. À medida que as violências se acumulam, ela se vê forçada a crescer antes do tempo e, silenciosamente, procura uma saída — nem sempre possível, mas necessária.
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Crítica de Manas (2025)
A força de “Manas” está no que ele se recusa a exibir. Marianna Brennand, vinda do documentário, compreende a responsabilidade de tratar de temas como abuso infantil com ética. Por isso, opta por uma mise-en-scène que protege tanto suas jovens atrizes quanto o público. Não há cenas gráficas, mas há tensão sufocante. O horror se insinua por gestos, olhares e silêncios — e o impacto é multiplicado.
A escolha de filmar com câmera na mão, em planos fechados e íntimos, nos coloca como testemunhas impotentes. Somos levados a observar tudo como se fôssemos parte da mata: presentes, mas incapazes de intervir. Essa estética se alia à montagem sensível de Isabela Monteiro de Castro e à fotografia precisa de Pierre de Kerchove, que constrói um contraste doloroso entre a beleza da natureza amazônica e a crueldade dos acontecimentos.
Uma protagonista inesquecível
Jamilli Correa entrega uma das atuações mais marcantes do cinema nacional recente. Aos 13 anos, em sua estreia, ela habita a personagem com um olhar denso, capaz de condensar medo, revolta, coragem e fragilidade em um único plano. É impressionante como sua presença domina a tela mesmo no silêncio. A cena em que encara a mãe — sem pronunciar uma só palavra — resume uma história inteira de abandono e cumplicidade forçada.
Rômulo Braga, como o pai abusivo, está igualmente perturbador. Sua atuação foge do maniqueísmo: ele é odioso, mas também humano — o que o torna ainda mais assustador. Já Fátima Macedo constrói uma figura materna que dói: sua resignação nos fere tanto quanto a violência explícita. E Dira Paes, ainda que com pouco tempo de tela, carrega com dignidade o papel de uma delegada inspirada em pessoas reais de resistência na região.
A denúncia que não vira panfleto
Ao tratar de uma temática tão sensível, “Manas” poderia facilmente cair em armadilhas panfletárias. Mas não o faz. O roteiro — assinado por um coletivo de roteiristas — é firme na denúncia, mas nunca gratuito. A narrativa cresce aos poucos, saindo de uma calmaria aparente para um crescendo de agonia. Quando o suspense se instala, a tensão é quase insuportável, e o final, embora contenha um fio de esperança, não oferece catarse. É um final que nos deixa remoendo, ruminando, com um gosto amargo na boca.
O simbolismo também é uma ferramenta poderosa no filme. Um batom, um coral gospel, um gesto trivial — tudo ali carrega camadas. A religiosidade, a estrutura patriarcal, a opressão silenciosa que naturaliza o abuso estão presentes com sutileza, sem didatismo.
Limites e críticas possíveis
Apesar da força de sua proposta, o longa não escapa de algumas limitações. A população retratada no filme, por exemplo, poderia ser mostrada com maior pluralidade. Há uma falta de aprofundamento nas tradições culturais locais — que aparecem mais como pano de fundo do que como elementos vivos da narrativa.
Ainda assim, a obra escapa de exotismos e jamais finge dar conta de tudo. Escolhe seu foco e permanece fiel a ele: a história de uma menina que decide romper um ciclo.
Conclusão
“Manas” não é um filme fácil — e, justamente por isso, é necessário. Em sua estreia na ficção, Marianna Brennand entrega uma obra potente, que combina estética apurada com urgência social. Jamilli Correa é um achado raro, e sua atuação sustenta a alma do filme. Em vez de mostrar o horror, o longa-metragem o deixa pulsar no subtexto, nos gestos não dados, nas palavras engolidas.
O resultado é uma obra que não nos deixa escapar. Ao fim, não há alívio. Há revolta. E talvez seja esse o maior elogio que se possa fazer a um filme que pretende, acima de tudo, abrir os olhos de quem ainda insiste em não ver. “Manas” é denúncia, é poesia, é um alerta. É, acima de tudo, cinema brasileiro do mais corajoso.
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Onde assistir ao filme Manas
O filme está disponível para assistir nos cinemas.
Trailer de Manas (2025)
Elenco do filme Manas
- Jamilli Correa
- Fátima Macedo
- Rômulo Braga
- Dira Paes
- Samira Eloá
- Enzo Maia
- Emily Pantoja
- Gabriel Rodrigues
Ficha técnica de Manas
- Direção: Marianna Brennand
- Roteiro: Camila Agustini, Carolina Benevides, Marianna Brennand
- Gênero: drama
- País: Brasil
- Duração: 101 minutos
- Classificação: 16 anos