Transformar uma das obras mais emblemáticas dos quadrinhos latino-americanos em uma série de streaming não é tarefa simples. Mais do que adaptar um enredo, trata-se de reimaginar uma narrativa que carrega uma carga simbólica profunda, entrelaçada com a história política, cultural e social da Argentina. “O Eternauta”, nova produção da Netflix criada por Bruno Stagnaro, encara esse desafio com coragem, respeito e ambição — mas também com concessões.
Ao longo de seus seis episódios, a série alterna entre o universal e o local, entre a ficção científica apocalíptica e a crônica do cotidiano argentino. A pergunta que pairava sobre o projeto — “será possível adaptar “O Eternauta” com fidelidade e atualidade?” — parece, enfim, ter uma resposta.
Sinopse da série O Eternauta (2025)
Na noite em que Buenos Aires mergulha num apagão, uma nevasca tóxica começa a cair sobre a cidade. Juan Salvo (Ricardo Darín) e seus amigos estão reunidos para uma partida de cartas quando percebem que o mundo exterior se tornou letal: flocos de neve que matam ao menor contato. Sem eletricidade, comunicação ou perspectiva, eles se abrigam, improvisam trajes, e partem em busca de sobrevivência — e de seus entes queridos.
Mas a ameaça não vem apenas do céu. A verdadeira batalha se dá também entre os vivos: vizinhos desconfiados, estruturas sociais em colapso e um tecido comunitário esgarçado. Ao fundo, ecos de uma invasão alienígena e a lembrança das feridas argentinas tornam a jornada ainda mais densa.
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Crítica de O Eternauta, da Netflix
A recriação de uma Buenos Aires devastada é um espetáculo visual. Com direção de fotografia precisa de Gastón Girod e um trabalho minucioso de efeitos visuais, a série transforma as ruas conhecidas da capital argentina em um cenário quase onírico — ou melhor, de pesadelo. Carros tombados, corpos soterrados pela neve, silêncios angustiantes e um céu que parece conspirar contra a humanidade. A série convence desde o primeiro plano.
O grande acerto aqui é o tom: o clima de pavor não vem da ação desenfreada, mas da construção de tensão. Cada saída à rua é um ato de risco. Cada decisão, uma possível sentença de morte. O ritmo é cadenciado, mas nunca moroso — e sempre nos leva adiante, mesmo quando os personagens hesitam.
Ricardo Darín e o poder do humano comum
Poucos atores no mundo carregam uma carga emocional tão latente quanto Ricardo Darín. Aqui, ele interpreta um herói que não tem poderes nem treinamento militar, mas que carrega o peso de decisões éticas, afetivas e práticas diante do colapso. Sua atuação, mesmo por trás de uma máscara, é precisa e comovente.
A escolha por envelhecer os personagens em relação à HQ original — dando a eles passados ligados, por exemplo, à Guerra das Malvinas — adiciona profundidade e ressignifica suas ações. Em vez de jovens descobrindo o horror, temos adultos lidando com memórias e frustrações acumuladas. Isso torna “O Eternauta” ainda mais político, mesmo que de forma sutil.
A coletividade como resistência
“O Eternauta” é uma obra sobre a importância de lutar junto. E Bruno Stagnaro entendeu isso. A série valoriza os laços — sejam familiares, afetivos ou circunstanciais — que mantêm os personagens de pé. Mesmo quando a desconfiança impera, é na solidariedade que se encontra fôlego para seguir.
Nesse sentido, Favalli (César Troncoso) e Ana (Andrea Pietra) funcionam como polos opostos do embate entre razão técnica e empatia. Juan Salvo oscila entre ambos, e essa ambiguidade o torna real, falho e profundamente identificável.
O peso das mudanças e o que se perde com elas
A transposição da história para os dias atuais traz ganhos importantes: a relação com o presente é mais direta e as metáforas — pandemia, colapso climático, guerra — ganham relevância. No entanto, esse movimento cobra um preço: parte do espírito portenho original, com suas gírias, dinâmicas de vizinhança e contexto político, se dilui.
A Buenos Aires da série é reconhecível, mas genérica. Poderia ser qualquer cidade do mundo. Isso não chega a ser um defeito grave, mas talvez seja o que impede a série de atingir o mesmo impacto simbólico que a HQ teve — especialmente para os argentinos.
Técnica, ritmo e narrativa
Do ponto de vista técnico, a série impressiona. Roteiro bem amarrado, cenários meticulosamente elaborados e um design de som que mergulha o espectador na claustrofobia da ameaça invisível. Ainda assim, o segundo e o quinto episódios apresentam uma leve queda de ritmo — um detalhe que não compromete o todo, mas pode testar a paciência de quem busca ação constante.
Já os elementos fantásticos, como os “bichos” alienígenas e o conceito de viagem no tempo, são inseridos de forma gradual, quase silenciosa. O foco é humano, e a série só se permite ir além do real quando já conquistou a confiança do público. Isso é inteligência narrativa.
Conclusão
“O Eternauta”, da Netflix, é, antes de tudo, uma vitória. Não apenas por adaptar com competência uma obra considerada inadaptável, mas por fazê-lo sem perder de vista sua alma. A série pode não carregar toda a carga política da HQ original, mas entrega uma narrativa envolvente, emocionante e visualmente arrebatadora.
Ao final, a sensação é de que algo foi iniciado — e não encerrado. Com apenas metade da história adaptada, “O Eternauta” se mostra uma série que respira com força, que entende seu tempo e que, acima de tudo, honra sua origem. Resta torcer para que a segunda temporada não tarde. Porque, como já dizia o slogan que virou mantra: ninguém se salva sozinho.
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Onde assistir à série O Eternauta?
A série está disponível para assistir na Netflix.
Trailer de O Eternauta (2025)
Elenco de O Eternauta, da Netflix
- Ricardo Darín
- Carla Peterson
- César Troncoso
- Andrea Pietra
- Ariel Staltari
- Marcelo Subiotto
- Claudio Martínez Bel
- Orianna Cárdenas
- Mora Fisz
Ficha técnica da série O Eternauta
- Título original: El Eternauta
- Criação: Bruno Stagnaro
- Gênero: ficção científica
- País: Argentina, Estados Unidos
- Temporada: 1
- Episódios: 6
- Classificação: 16 anos