Em meio ao catálogo recheado do Prime Video, surge uma produção que não tem medo de sujar as mãos: Cometerra. Adaptada do aclamado romance homônimo da argentina Dolores Reyes, e trazida à tela pelo diretor Daniel Burman (de Iosi, o Arrependido), esta série não é só mais um drama adolescente com toques sobrenaturais. É um soco no estômago, um espelho incômodo apontado para as feridas abertas da América Latina — mais especificamente, para a epidemia de feminicídios e desaparecimentos que aterra a região.
Burman, ao transferir a história da Argentina para o México, mostra que a dor da periferia, a omissão do Estado e a urgência do grito feminista “Ni Una Menos” são, tristemente, universais. Com um elenco afiado, incluindo a indicada ao Oscar Yalitza Aparicio e a revelação Lilith Curiel, a série prova que o realismo mágico ainda tem muito a dizer sobre a nossa brutal realidade.
Sinopse
Cometerra nos apresenta a Aylín (Lilith Curiel), uma adolescente mexicana que vive na periferia e que, após um episódio de bullying, descobre um dom tão bizarro quanto trágico: ao comer terra, ela passa a ter visões vívidas de pessoas que foram mortas ou que desapareceram. Esse poder involuntário a transforma em uma “detetive espiritual”, uma espécie de médium que carrega o fardo da memória coletiva.
Ao lado do irmão Walter (Roberto Aguilar) e do policial Ezequiel (Harold Torres), que se torna um aliado improvável, Aylín se enreda em casos de desaparecimento que a polícia local costuma ignorar. A série, longe de ser um procedural simples, usa esse elemento fantástico como uma lente de aumento para expor o drama social e a violência estrutural que pairam sobre sua comunidade, focando na impunidade e na dor das famílias que procuram por suas filhas e mães.
➡️ Quer saber mais sobre filmes, séries e streamings? Então acompanhe o trabalho do Flixlândia nas redes sociais pelo INSTAGRAM, X, TIKTOK, YOUTUBE, WHATSAPP, e GOOGLE NOTÍCIAS, e não perca nenhuma informação sobre o melhor do mundo do audiovisual.
Resenha crítica da série Cometerra
💔 A transferência de dor: da Argentina ao México
Uma das decisões mais audaciosas e acertadas de Daniel Burman foi tirar a história do Conurbano bonaerense para jogá-la na Cidade do México. E que bom que ele fez isso! Não foi uma mera jogada logística, mas um movimento simbólico que universaliza o tema. A violência de gênero e a impunidade estatal não são exclusivas de um país; são a marca registrada da região.
Ao fazer essa transposição, a série reforça o que o livro de Dolores Reyes já gritava: a dor é a mesma, as injustiças se repetem, e a terra que uma adolescente devora no México tem o mesmo peso das periferias argentinas. É uma forma inteligente de manter a essência política e visceral do livro, ampliando seu alcance para uma discussão latino-americana de fôlego.

💫 O realismo mágico como arma de crítica social
O grande trunfo de Cometerra está no seu tom. Ela não hesita em misturar o drama adolescente, com suas amizades e descobertas (embora o sumiço repentino do namorado de Aylín seja um ponto solto e confuso, e a aceitação imediata dos amigos ao seu dom seja um furo na narrativa), com o horror onírico das visões. O dom de Aylín é a metáfora perfeita: a terra guarda a memória que a sociedade e o Estado tentam enterrar.
As visões da protagonista são um espetáculo à parte, filmadas com uma estética saturada, tons vermelhos e uma trilha experimental que te puxa para um pesadelo constante. É a prova de que o realismo mágico latino-americano segue vivo, mas agora com uma pegada urbana e politizada.
A série transforma o sobrenatural em ferramenta de denúncia. Aylín não é uma super-heroína que resolve tudo, mas sim uma mediadora vulnerável que carrega o fardo da violência alheia, expondo a ferida social através de seu corpo e de seu poder.
🎶 Música, tensão e as convenções do streaming
A série tem um elenco coadjuvante de peso, com Harold Torres e Gerardo Taracena, além de Yalitza Aparicio (em um papel importante no início da trama), que dão corpo e credibilidade à narrativa. As atuações são sólidas e ajudam a sustentar a atmosfera densa.
No entanto, há um detalhe que quebra um pouco o feitiço: a trilha sonora pop. Enquanto a música incidental contribui para o clima de tensão e sufocamento, a insistência em inserir hits de artistas conhecidos (como Natalia Lafourcade, Cazzu, Bizarrap) acaba parecendo uma estratégia de plataforma para vender a trilha ou fisgar a audiência jovem, e não uma escolha orgânica.
É um pequeno incômodo que, em alguns momentos, perturba o clima sombrio que a série constrói com tanto cuidado. Mesmo assim, Burman se mostra à vontade no formato streaming, entregando uma série curta, intensa e que funciona como um thriller envolvente, apesar de ter suavizado um pouco a ambiguidade e a introspecção brutal do romance original.
Conclusão
Cometerra é uma série necessária. Vai muito além do entretenimento para se posicionar como um comentário social urgente sobre a realidade da violência de gênero na América Latina. Ao usar a fantasia como veículo para a verdade, a série honra o espírito do livro de Dolores Reyes, transformando o silêncio e o esquecimento em visões perturbadoras e em um grito de resistência.
O poder de Aylín é o símbolo da memória que se recusa a ser calada. É uma produção que, mesmo com alguns desvios do texto original e concessões ao formato streaming, cumpre sua missão: nos fazer encarar a terra que pisamos, sabendo que ela carrega as histórias e a dor de milhares de vozes silenciadas.
Onde assistir à série Cometerra?
Trailer de Cometerra (2025)
Elenco de Cometerra, do Prime Video
- Lilith Curiel
- Gerardo Taracena
- Harold Torres
- Hugo Albores
- Max Peña
- Ivan Martz
- Roberto Aguilar
- Mabel Cadena
- Yalitza Aparicio


















