Imagine a cena: um homem termina calmamente seu terceiro drink de vodka e um prato de espaguete em um restaurante italiano movimentado. Ele deixa uma gorjeta generosa, cita uma frase do filme Taxi Driver (“I am that rain”, ou “Eu sou essa chuva”, em português) e, de repente, o inferno se desata. É com essa premissa brutal, baseada em um dos capítulos mais sombrios da história da Colômbia, que a Netflix nos apresenta Dissociação.
Estreando exatos 39 anos após o fatídico 4 de dezembro de 1986, a série mergulha no massacre do restaurante Pozzetto, em Bogotá. Mas, calma, não espere um documentário “true crime” convencional. A produção aposta alto na ficção para tentar preencher as lacunas do inexplicável, focando menos nos tiros em si e mais na mente perturbada de quem apertou o gatilho e nas pessoas que orbitavam ao seu redor.
Sinopse
A trama gira em torno da amizade improvável e tóxica entre Jeremías Salgado (vivido pelo sempre intenso Andrés Parra), um veterano da Guerra do Vietnã e professor de inglês que carrega traumas profundos, e Camilo León (José Restrepo), um jovem estudante de literatura, ingênuo e um tanto vaidoso. O que começa como uma conexão intelectual sobre livros e a morte acaba evoluindo para algo muito mais sinistro.
A narrativa vai e volta no tempo. Vemos o rescaldo do massacre, onde um Camilo confuso e com amnésia dissociativa (o tal “estado de fuga”) é confrontado pela investigadora Indira Quinchía (Carolina Gómez). Indira tenta entender se Camilo foi apenas uma testemunha ou se, sem perceber, acabou ajudando Jeremías a planejar a tragédia.
Enquanto isso, flashbacks nos mostram os meses anteriores ao crime, revelando como a solidão de Jeremías e a curiosidade mórbida de Camilo criaram uma bomba-relógio prestes a explodir no coração de uma Bogotá já marcada pela violência dos anos 80.
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Resenha crítica da série Dissociação
O “efeito Ryan Murphy” e a humanização do monstro
Vamos ser sinceros: existe uma linha muito tênue entre tentar entender a psicologia de um assassino e acabar glamourizando suas ações. Dissociação caminha perigosamente nessa corda bamba. A série parece beber muito da fonte de produções como Dahmer ou a antologia Monstros, de Ryan Murphy.
Ao tentar mostrar Jeremías como uma figura isolada, rejeitada socialmente (a cena dolorosa em que ele é ignorado por uma repórter na festa é um exemplo claro de vibrações “incel”) e incompreendida, a narrativa corre o risco de cair naquele terreno pantanoso de “ele era só um cara solitário”.
Para alguns, isso pode soar como uma exploração necessária da origem do mal; para outros, pode deixar um gosto amargo na boca, parecendo uma tentativa forçada de criar empatia por alguém que cometeu atrocidades — incluindo matar a própria mãe e queimá-la com jornais.

Atuações que carregam o peso do roteiro
O que salva a série de ser apenas mais um produto genérico sobre serial killers é o elenco. Andrés Parra encarna Jeremías com uma frieza calculada que dá arrepios. Ele não precisa gritar para ser assustador; é na calmaria, no jeito como ele assiste a filmes adultos na casa da mãe ou nas suas teorias bizarras sobre Sherlock Holmes ser Jack, o Estripador, que vemos a loucura se instalando.
Do outro lado, temos José Restrepo como Camilo, que serve como nossos olhos. A dinâmica entre os dois é o motor da série: um jogo de espelhos onde a curiosidade intelectual se transforma em obsessão perigosa. No entanto, há um certo descompasso tonal.
Enquanto Parra está num thriller psicológico denso, Carolina Gómez, como a detetive Indira, às vezes parece estar atuando em uma daquelas histórias de detetive noir exageradas dos anos 50, com suas tragadas de cigarro dramáticas e olhares penetrantes. São talentos enormes, mas que às vezes parecem estar em séries diferentes.
Ritmo, atmosfera e a Bogotá dos anos 80
A direção de Carlos Moreno e Claudia Pedraza acerta em cheio na ambientação. A Bogotá retratada não é apenas um cenário, é um personagem que sufoca. A série captura bem a tensão pós-Palácio da Justiça, onde a violência parecia ser uma rotina inevitável. A fotografia com luz baixa e a sensação de claustrofobia ajudam a vender a ideia de que o horror não surge do nada; ele é construído dia após dia, no tédio e na indiferença.
Porém, o ritmo pode ser um problema para o espectador moderno acostumado com gratificação instantânea. A narrativa não linear, saltando entre o passado e o presente (pós-massacre), tenta criar complexidade, mas às vezes apenas arrasta a história.
Há uma repetição de temas e situações que faz a gente pensar se essa história precisava mesmo de tantos episódios ou se funcionaria melhor como um filme enxuto. A sensação de “encher linguiça” para agradar o algoritmo da Netflix é real.
Conclusão
Dissociação é uma obra complexa e incômoda. Ela tem méritos inegáveis ao evitar o sensacionalismo visual barato na hora do massacre, optando por focar na decomposição psicológica dos personagens. A participação de Mario Mendoza, autor do livro Satanás e que conheceu o assassino na vida real, traz uma camada de autenticidade literária interessante ao projeto.
No entanto, a série exige paciência e estômago. Não pelas cenas de sangue, mas pela atmosfera pesada e pela decisão moralmente ambígua de humanizar um assassino em massa. Se você procura ação desenfreada, pule. Mas, se você se interessa por estudos de personagem e por como uma sociedade doente pode criar seus próprios monstros, pode ser uma experiência válida — ainda que perturbadora e, por vezes, cansativa.
Onde assistir à série Dissociação?
Trailer de Dissociação (2025)
Elenco de Dissociação, da Netflix
- Andrés Parra
- José Restrepo
- Carolina Gómez
- Jorge Enrique Abello
- Consuelo Luzardo
- Camila Jurado
- Valentina Acosta
- César Mora
- Héctor García
- Marcela Benjumea















