Quando um cineasta decide adaptar um clássico como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, o desafio transcende a técnica: é um salto em direção ao risco. Guel Arraes, conhecido por produções icônicas como O Auto da Compadecida, embarca nessa ousadia com o filme “Grande Sertão” (2024).
Ao transportar o sertão tradicional para uma favela distópica urbana, o diretor entrega uma obra que, ao mesmo tempo, homenageia a literatura brasileira e a reinventa para dialogar com um Brasil contemporâneo repleto de contradições e violências.
Em uma comunidade periférica fictícia chamada “Grande Sertão”, cercada por muros que isolam seus habitantes do resto da cidade, Riobaldo (Caio Blat), um professor de história, enfrenta dilemas morais e existenciais enquanto é arrastado para uma guerra entre facções criminosas e a polícia.
Em meio ao caos, sua relação com Diadorim (Luisa Arraes), marcada por mistério e paixão, é central para a narrativa. A trama reflete sobre amor, lealdade e coragem, tudo isso permeado por diálogos literários e uma estética visual deslumbrante que ressignifica o sertão para o cenário urbano.
“Grande Sertão” se apresenta como uma adaptação ousada, mas profundamente consciente de suas raízes literárias. A escolha de Guel Arraes por trazer o clássico de Guimarães Rosa para o ambiente urbano não é apenas uma atualização estética: é uma declaração política.
Ao transformar as disputas dos jagunços em conflitos entre gangues e forças policiais, o filme traça um paralelo inquietante entre o sertão e as periferias contemporâneas, questionando a permanência da violência nas estruturas sociais brasileiras.
Direção de arte e fotografia
A direção de arte e a fotografia são verdadeiros pontos altos da produção. O cenário distópico ganha vida nas mãos de Gustavo Hadba, que combina ângulos inusitados e iluminação precisa para criar uma ambientação opressiva e ao mesmo tempo poética.
A caracterização dos personagens, especialmente Hermógenes (Eduardo Sterblitch), é um espetáculo à parte, com maquiagem e figurinos que aproximam o vilão de uma figura demoníaca que simboliza a destruição.
Eduardo Sterblitch rouba a cena
As atuações, em grande parte, sustentam o peso do filme. Caio Blat, que revisita Riobaldo após anos interpretando-o no teatro, traz uma profundidade emocional única ao protagonista. Luisa Arraes surpreende como Diadorim, abordando com sensibilidade as nuances de identidade e gênero que tornam a personagem tão marcante.
Mas é Eduardo Sterblitch quem rouba a cena: sua interpretação de Hermógenes é visceral, um vilão que encarna a brutalidade e a loucura de um mundo sem redenção.
Diálogos literários originais
No entanto, o filme nem sempre atinge o equilíbrio entre suas ambições. Ao manter os diálogos literários originais de Rosa, “Grande Sertão” desafia o público com sua linguagem rebuscada, mas por vezes compromete a fluidez narrativa.
A teatralidade, marca registrada de Guel Arraes, funciona em muitos momentos, mas pode parecer deslocada em cenas de ação ou conflito mais intensos.
Além disso, o foco quase exclusivo nas figuras de poder – facções e polícia – deixa de explorar mais profundamente a perspectiva dos habitantes comuns, que poderiam enriquecer o universo criado.
“Grande Sertão” é uma obra audaciosa que reafirma a relevância de Guimarães Rosa e sua capacidade de dialogar com questões contemporâneas. Guel Arraes entrega um filme visualmente impactante, carregado de atuações memoráveis e reflexões pertinentes sobre violência, amor e identidade.
Embora não seja perfeito, o longa consegue honrar o espírito do romance original enquanto traça novos caminhos para a literatura brasileira no cinema. É um convite para revisitar Rosa sob uma nova perspectiva – uma que ecoa nos sertões urbanos de hoje.
Formado em Design Gráfico, Pós-graduado em Jornalismo e especializado em Jornalismo Cultural, com passagens por grandes redações como TV Globo, Globonews, SRZD e Ultraverso.
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