
Foto: Vitrine Filmes / Divulgação
Quarenta e dois anos após ter sido censurado pela Ditadura Militar, “Onda Nova” finalmente estreia comercialmente nos cinemas brasileiros. Rotulado de “amoral” e interditado após sua primeira exibição em 1983, o longa dirigido por José Antonio Garcia e Ícaro Martins ressurge agora em versão restaurada em 4K, como uma cápsula provocadora de outro tempo — e, ao mesmo tempo, um espelho desconcertante do presente.
Mais do que um produto de seu contexto, “Onda Nova” é uma afronta deliberada às normas, um grito de liberdade disfarçado de comédia erótica. Sua reestreia não apenas resgata uma obra injustamente silenciada, mas também recoloca em debate o papel do desejo, da arte e do corpo feminino como formas de resistência.
Em um país que ainda lida com os resquícios do moralismo e da repressão, assistir “Onda Nova” hoje é como redescobrir um cinema que ousava ser livre — e entender por que isso ainda incomoda tanto.
Sinopse do filme Onda Nova
“Onda Nova” (1983) é uma comédia erótica e anárquica que gira em torno das jogadoras do fictício Gayvotas Futebol Clube, um time feminino criado justamente no ano em que o futebol para mulheres foi finalmente legalizado no Brasil, após mais de quatro décadas de proibição.
Em plena ditadura militar, as protagonistas enfrentam o conservadorismo social com doses generosas de irreverência, liberdade sexual e um senso de coletividade transformador.
O roteiro é episódico, transita entre situações absurdas, cenas eróticas, críticas sociais e momentos de lirismo, acompanhando a vida dessas mulheres dentro e fora dos campos. Participações especiais de figuras como Caetano Veloso e Casagrande reforçam a conexão entre arte, cultura pop e política.
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Crítica de Onda Nova (1983)
O que poderia ser mais uma obra perdida no oceano das pornochanchadas da década de 70/80 se revela, com o passar do tempo, como uma ousada tentativa de reescrever os códigos desse subgênero tão popular.
“Onda Nova”, ao invés de se prender ao apelo do corpo feminino como objeto de desejo masculino, entrega um olhar feminista e politizado, ainda que construído por dois homens. A sexualidade, aqui, não serve à excitação voyeurística, mas à emancipação das personagens, que fazem do desejo um motor de existência.
O fato de o filme ter sido completamente interditado após sua exibição na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 1983, não surpreende. Mesmo sem tratar diretamente de política, ele transborda rebeldia. Seu erotismo, seu humor ácido e sua estrutura fragmentada desafiam a lógica autoritária tanto do Estado quanto da narrativa convencional.
Estética anárquica e energia juvenil
Visualmente, “Onda Nova” é um deleite. A restauração em 4K evidencia as cores vibrantes e a direção de arte caprichada, que capturam a energia oitentista de forma quase sensorial. Há uma liberdade estética que acompanha a liberdade temática: a câmera flerta com o absurdo, mergulha no surreal e escancara o prazer com um sorriso malicioso no rosto.
A trilha sonora, composta por canções populares da época, reforça essa atmosfera de celebração e irreverência. E mesmo quando o tom muda abruptamente — em subtramas que envolvem aborto ou suicídio —, o filme não perde sua essência: a da juventude que busca viver plenamente, mesmo em tempos sombrios.
Feminilidade em foco: o Gayvotas F.C. como ato político
A grande força do filme reside no coletivo de mulheres que protagoniza a narrativa. Cada uma carrega seus conflitos, mas todas encontram no futebol — e na convivência entre si — um espaço de liberdade e reinvenção. Ritinha, interpretada por Carla Camurati, abandona o conforto burguês para viver um amor aberto e apaixonado.
Lili, vivida por Cristina Mutarelli, enfrenta o preconceito da própria família por ser “masculinizada”. As demais jogadoras também possuem seus arcos, ainda que breves, e o elenco imprime carisma e autenticidade às cenas.
O time Gayvotas torna-se, assim, uma metáfora para um Brasil que ousava sonhar com um futuro diferente, onde as mulheres não seriam apenas musas de bordel, mas agentes da própria história. O erotismo, nesse contexto, vira linguagem política.
Ícones, humor e a libido como protesto
As participações especiais são puro deleite: Caetano Veloso transando num táxi, Casagrande em cena de sonho erótico com maria-chiquinha — tudo isso não apenas diverte, mas reforça a dimensão cultural do filme. “Onda Nova” é pop e político. É libertário e libidinoso. É, em essência, uma celebração do corpo como território de prazer e de resistência.
As comparações com a irreverência de John Waters ou o surrealismo de Buñuel não são exageradas. Há momentos que beiram o nonsense, mas sempre com intencionalidade. O filme não busca coerência dramática, e sim uma colagem de situações que, juntas, formam o retrato de uma geração que queria — e precisava — quebrar regras.
Uma restauração que é também um recomeço
Mais de quatro décadas depois, o relançamento de “Onda Nova” ganha contornos simbólicos. Ele reaparece num Brasil que ainda lida com as amarras do moralismo e o peso de retrocessos recentes. Como afirmou Francisco Martins, o erotismo segue sendo uma arma contra o conservadorismo. A exibição em cinemas de diversas capitais, a nova cópia em 4K e o cartaz assinado por Helena Garcia reforçam a importância de revisitar e preservar essa memória subversiva.
Conclusão
“Onda Nova” não é um filme para todos os gostos — nem pretende ser. É uma obra anárquica, provocadora e profundamente brasileira, que mistura comédia, erotismo, política e futebol com uma liberdade raríssima no cinema nacional.
Ao colocar mulheres no centro da narrativa e transformar o prazer em bandeira, José Antonio Garcia e Ícaro Martins entregam um filme que continua incômodo, atual e necessário. A restauração de “Onda Nova” não é apenas um resgate histórico: é um gesto político e artístico de resistência.
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Onde assistir ao filme Onda Nova?
O filme estreou no dia 27 de março de 2025 nos cinemas.
Trailer de Onda Nova (1983)
Elenco do filme Onda Nova
- Carla Camurati
- Cristina Mutarelli
- Cida Moreira
- Cristina Bolzan
- D’Artagnan Jr.
- Ênio Gonçalves
- Lucia Braga
- Regina Casé
- Luis Carlos Braga
- Neide Santos
- Patrício Bisso
- Petrônio Botelho
- Pietro Ricci
- Pita
- Regina Carvalho
- Vera Zimmermann
Ficha técnica de Onda Nova (1983)
- Direção: Ícaro Martins, José Antonio Garcia
- Roteiro: Ícaro Martins, José Antonio Garcia
- Gênero: comédia
- País: Brasil
- Duração: 102 minutos
- Classificação: 18 anos