Há algo de paradoxal no legado de Maurice Ravel: um compositor refinado, detalhista ao extremo, que criou uma das peças mais populares da história da música — e que, ainda assim, parecia não nutrir grande afeição por ela. Bi filme “Bolero: A Melodia Eterna”, Anne Fontaine transforma essa contradição em narrativa, usando a figura do artista como espelho de um dilema maior: o que significa criar por encomenda? É possível negar a potência de uma obra que transcende o seu próprio criador?
A diretora francesa, conhecida por seu olhar delicado e ao mesmo tempo preciso (Coco Antes de Chanel), mergulha aqui em uma cinebiografia contida, mas de grande impacto. Ancorada na atuação sutil de Raphaël Personnaz e em uma estética que prioriza o silêncio, a repetição e a ambiguidade, a produção revela mais por meio da contenção do que da exposição.
Sinopse do filme Bolero – A Melodia Eterna
“Bolero: A Melodia Eterna” acompanha os bastidores da criação da famosa composição de Maurice Ravel, encomendada pela bailarina russa Ida Rubinstein. O filme se debruça sobre o processo criativo do músico — um homem metódico, solitário e atormentado por traumas pessoais — enquanto reconstrói com sensibilidade a Paris dos anos 1920, cenário onde arte e repressão se entrelaçam.
À medida que Ravel (Personnaz) revisita memórias dolorosas e confronta desejos reprimidos, sua obsessiva busca por perfeição culmina na construção de sua obra mais icônica — e paradoxalmente renegada.
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Crítica de Bolero – A Melodia Eterna (2025)
Anne Fontaine conduz a narrativa com extrema precisão, como se estivesse obedecendo à mesma lógica rítmica do Bolero de Ravel. Seu filme é pautado pela contenção: os silêncios se impõem sobre os diálogos, as emoções vibram sob a superfície, e a montagem evita picos dramáticos em favor de uma cadência quase hipnótica.
É preciso, no entanto, um tempo para sintonizar com essa proposta. A primeira meia hora pode soar fria ou excessivamente cerebral. Mas, quando o espectador se adapta à frequência do filme, percebe que há uma construção sólida por trás de cada escolha estética — do uso simbólico da luz às repetições estruturais da narrativa, que ecoam o ostinato musical da composição.
Personnaz como o intérprete do indizível
Raphaël Personnaz, mais conhecido por papéis discretos no cinema francês, encontra aqui um ponto alto de sua carreira. Seu Ravel é todo nuance: um meio-sorriso aqui, uma hesitação na fala ali, um olhar que desvia no momento exato. O ator constrói um personagem profundamente complexo sem precisar verbalizar seus conflitos. E isso não seria possível sem a confiança que Fontaine deposita em sua performance minimalista.
A relação de Ravel com as mulheres que o cercam — especialmente Misia Sert (Doria Tillier) e Rubinstein (Jeanne Balibar) — é tratada com igual sutileza. Há desejo, sim, mas há também repressão, ambiguidade, negação. O longa evita rotular o protagonista, preferindo explorar a densidade humana de alguém que, mesmo em meio à efervescência artística de Paris, escolhe conter-se.
Um Bolero que fala de contrato, renúncia e legado
O filme ganha força justamente quando se permite tornar-se metalinguístico. O “Bolero” de Ravel foi uma obra encomendada, fruto de uma colaboração que o compositor inicialmente rejeitava. Fontaine transforma essa gênese desconfortável em reflexão: quanta arte nasce do desconforto? O que existe de autêntico na criação motivada por exigências externas?
Essa discussão se espelha na própria trajetória de Fontaine. Coautora do roteiro, ela parece compartilhar com Ravel uma certa frustração com os limites impostos pelo sistema artístico. O filme, então, também funciona como um autorretrato — um gesto de confissão e, ao mesmo tempo, de redenção.
Paris como cenário e personagem
A ambientação é outro ponto de destaque. A Paris dos anos 1920, reconstruída com esmero por Riton Dupire-Clément, emerge como uma personagem silenciosa. Os ambientes aristocráticos, os clubes de jazz, as pontes sobre o Sena… tudo respira arte e contenção, numa perfeita simetria com o universo interno do protagonista.
A fotografia de Christophe Beaucarne, ora luminosa, ora granulada, contribui para a atmosfera suspensa do filme. Já a montagem de Thibaut Damade se inspira na estrutura musical do Bolero — marcada pela repetição e pela acumulação — para construir um ritmo cinematográfico envolvente, ainda que não convencional.
Conclusão
“Bolero: A Melodia Eterna” é mais do que uma cinebiografia: é uma meditação estética sobre o peso da genialidade, o silêncio do desejo e a complexa relação entre criador e criação. Anne Fontaine encontra em Maurice Ravel um alter ego artístico e o transforma em um símbolo de todos os artistas que já sentiram que sua obra os ultrapassou. É um filme de camadas, de ecos e de pausas — como a própria música do artista.
Pode não agradar a quem busca respostas fáceis ou emoções explícitas. Mas para quem aceita dançar conforme o compasso da sua melodia inquebrantável, o filme oferece uma experiência memorável, reflexiva e profundamente humana.
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Onde assistir ao filme Bolero – A Melodia Eterna
O filme está disponível para assistir nos cinemas.
Trailer de Bolero – A Melodia Eterna (2025)
Elenco do filme Bolero – A Melodia Eterna
- Raphaël Personnaz
- Doria Tillier
- Jeanne Balibar
- Emmanuelle Devos
- Vincent Perez
- Sophie Guillemin
- Alexandre Tharaud
- Florence Ben Sadoun
Ficha técnica de Bolero – A Melodia Eterna (2025)
- Título original: Bolero
- Direção: Anne Fontaine
- Roteiro: Anne Fontaine, Claire Barré
- Gênero: drama, biografia
- País: França, Bélgica
- Duração: 120 minutos
- Classificação: 14 anos